CARMEN, uma produção da Associação Setúbal Voz com o apoio da DGArtes, estreou a 2, 3 e 4 de dezembro de 2022, no Fórum Municipal Luísa Todi e repetiu a 10 de dezembro de 2022 no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.
A história é simples: Don José tinha um namoro juvenil com Micaëla ao qual Micaëla se manteve fiel até ao fim. Quando Carmen surge na vida de Don José rapidamente desperta nele uma paixão adulta, como este nunca antes tinha sentido. Mas Carmen voava de amor em amor como um pássaro rebelde e ao conhecer Escamillo, uma vedeta internacional, rapidamente se desinteressou por Don José deixando-se cair nos braços de Escamillo.
Don José passou da paixão, à obsessão e a um sentimento de posse que o levou ao limiar da loucura.
Pareceu-nos, no entanto, que no momento da História da Humanidade que vivemos, seria fundamental colocar em cena um olhar consciente sobre algumas questões colocadas pelo libreto de Meilhac e Halévy baseado no romance homónimo de Mérimée: a condição feminina, as minorias e os direitos dos animais. No libreto original, Carmen paga com a vida a liberdade de escolher os seus amores. Esta ópera é, no fundo, sobre o amor e sobre o ciúme e tem para nós uma ligação direta à problemática da violência sobre a Mulher. Só no 1.º semestre de 2022 registam-se 17 vítimas mortais de violência doméstica em Portugal. Inspirámo-nos também nas lutas pioneiras das ativistas e sufragistas da primeira metade do séc. XX, as marchas de protesto e as manifestações pelo voto feminino e pela igualdade de direitos.
Em contracorrente com o argumento, interessou-nos também construir um anti-herói a partir de Escamillo, o grande macho “toredor”. Lemos nos trajes tradicionais dos “toreadores” a exposição de uma sexualidade reprimida e de um ser feminino ausente das arenas mas presente numa espécie de travesti, explícito nas posturas, passos e gestos, na ausência de barba e na presença da coleta. Escamillo é símbolo da divisão entre os que ainda defendem tudo o que a personagem original representa e os que advogam o fim das touradas. Não podemos permitir que mais Dons Josés matem Carmens ou Marias, e Escamillo está no auge da bestialidade matando, mais que por raiva, ciúme, desespero, vingança ou loucura, mas simplesmente por prazer.
As personagens coletivas (militares, trabalhadoras da fábrica de cigarros, contrabandistas, público da tourada, povo, etc.) foram reduzidas a seres humanos que caminham no sentido de se tornarem mais bestas que os animais. Nesse constrangimento conceptual, fazemos desaparecer aquilo que é uma óbvia justificação de Mérimée para a Liberdade e o caráter profundamente provocatório da personagem Carmen tornando-a cigana e colocando a marginalidade nas personagens dessa etnia. Integrámos membros dessa comunidade em dois momentos da nossa dramaturgia: o coro das crianças de rua, alertando para a pobreza que atinge grande parte dessa comunidade e numa personagem que criámos e que circula durante a ópera como uma espécie de consciência sobre toda a história, com capacidade de a mudar e compreender.
É uma visão pessimista da Espécie Humana, no limite todos matamos, todos somos carrascos, tal como nos pareceu ler em Ensaio Sobre a Cegueira de Saramago. Micaëla representa a esperança, alguém que faz o percurso inverso no sentido da humanização e de um ser belo física e espiritualmente.
Poucos meses após a estreia desta obra-prima, Bizet falecia antes de completar os 37 anos. Que CARMEN continue viva em nós!
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